Esse texto é o primeiro de uma série que faremos com o objetivo de trazer um pouco de luz ao regramento e aplicação (às vezes, não tão republicana) das normas sobre especialidade médica vigentes.
Vamos lá.
Não é incomum que médicos especialistas se posicionem, de forma contundente, sobre a imprescindibilidade de Registro de Qualificação de Especialista (RQE) para uma boa prática médica na especialidade.
Esse discurso – que povoa as redes sociais – é catalisado por campanhas promovidas por algumas sociedades de especialidade médica e é justificado por uma pretensa defesa da sociedade e da saúde do país.
Esclareço.
Há pouco mais de 1 (um) ano, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou postagem – já removida – na qual alertava a população sobre a existência de “falsos especialistas”.
A ABP definiu à época como “falsos psiquiatras” os médicos que exercem a psiquiatria sem o registro de qualificação de especialista (RQE).
Não por coincidência, um médico – regularmente inscrito no CRM-PA – foi preso em 11.04.2024 por pretenso crime de exercício ilegal da medicina, por exercer a psiquiatria sem o registro de qualificação de especialista (RQE). Para saber mais, leia a matéria publicada à época https://www.pc.pa.gov.br/noticia/4615
Essa prisão decorreu, certamente, da (1) desinformação promovida pela ABP-AMB e, principalmente, do (2) absoluto desconhecimento da matéria pelo sistema justiça. Mas isso é tema para um próximo artigo.
Continuemos.
Nesse momento, você, que é especialista, pode estar pensando: “a medicina está sucateada e é preciso dar uma resposta contundente à criação desenfreada de escolas de medicina” e, por essa razão, você irá concluir que “somente o registro de qualificação de especialista (RQE) é capaz de esclarecer à população quem é ou não apto ao exercício da especialidade em alto nível”.
Pois bem. Vamos aprofundar um pouco. Mas prometo ser breve.
Imaginemos um caso hipotético. João, médico, concluiu curso de especialização em psiquiatria em instituição credenciada pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). Ele dividia plantões com os residentes e era submetido ao mesmo treinamento em serviço. Ao final de 3 (três) anos, cumpriu 8.640 horas de especialização, carga horária idêntica àquela exigida para os residentes da instituição.
Naturalmente, João não recebia bolsa, não tinha benefícios previdenciários e não saiu com o título de especialista em psiquiatria, já que não prestara o concurso para a residência médica.
João não tem RQE em psiquiatria, apesar de – repito – ter sido submetido a treinamento em serviço idêntico àquele realizado pelos residentes.
Por outro lado, José, médico, 75 anos, nunca fez nenhum curso de especialização e, também, não era muito afeto a Congressos. Nunca fez residência e nem prova de título. José atua na psiquiatria desde fevereiro de 1989. Em razão de norma do Conselho Federal de Medicina (CFM), José tem registro de qualificação de especialista (RQE) em psiquiatria.
José defende a exigência de RQE como condição ao exercício da psiquiatria e propaga a tese de que é preciso cuidado com os “falsos psiquiatras” em suas redes sociais.
Sigamos.
O caso de Pedro é o mais interessante. Pedro é o mais radical defensor do Registro de Qualificação de Especialista (RQE) e o maior acusador de “falsos especialistas”. Pedro entende que todos que se divulgam psiquiatras deveriam ser presos. Ele até cita o art. 20, da Lei nº 3.268-1957, como justificativa de sua sandice. Pedro não faz ideia como é o correto exercício hermenêutico dessa norma, mas segue propagando desinformação.
Vamos ao caso de Pedro.
Pedro não se formou em uma universidade de primeira linha. Além disso, era um dos piores alunos da classe. Pedro esconde seu histórico escolar com o mesmo vigor com que omite onde fez sua graduação.
Mas Pedro teve a sorte de ter um pai dono de uma clínica famosa de psiquiatria.
Por esse motivo, conseguiu que sua carteira de trabalho fosse assinada como médico psiquiatra (apesar da Resolução CFM nº 2336-2023 proibir), já que sabia que era requisito para o deferimento de sua inscrição na prova de título da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Pedro se associou à ABP não porque quis, mas porque não queria pagar o dobro para fazer a prova. Inclusive, o direito fundamental à liberdade associativa passa longe aqui, mas, também, é tema para outro artigo.
Pedro fez o cursinho online indicado e passou na prova de primeira fase. Fez a prova no conforto de sua casa, de pijama mesmo. A prova foi integralmente online e na modalidade múltipla-escolha.
Pedro quando soube que passou na prova escrita, começou a ficar ansioso para fazer a prova prática.
No dia determinado, Pedro se arrumou e foi até o local de prova. A prova prática se resumiu a uma consulta. Exato. Uma consulta. Pedro acertou o diagnóstico de um senhor que tinha delírios persecutórios e, como mágica, ganhou seu título de especialista em psiquiatria, emitido pelo ABP-AMB.
É bem verdade que ele teve que pagar quase 2 (dois) mil reais para a emissão de uma folha de papel. Levou a folha de papel (certificado) ao CRM e solicitou seu tão desejado Registro de Qualificação de Especialista (RQE) em psiquiatria.
Pedro está feliz. Se divulga como psiquiatra, critica os “falsos psiquiatras” e ainda virou responsável técnico pela clínica do seu pai, que acaba de se aposentar.
O primeiro ato de Pedro foi demitir João, que apesar de jovem, já era e estrela da clínica. Pedro estava enciumado, porque João era o braço direito de seu pai.
Por ciúmes, Pedro denunciou João ao conselho regional de medicina alegando que seu jaleco tinha a palavra “psiquiatria” e somente quem tem RQE pode fazer isso.
João perdeu o emprego e está respondendo a uma sindicância.
Ah, antes que você, leitor, mande João fazer a prova de título, queria deixar claro que ele até tentou se inscrever, mas a ABP disse que a especialização que ele fez de 8.640 horas não vale de nada, nem mesmo como pré-requisito para inscrição.
Uma última reflexão: aqueles que defendem arduamente e agressivamente o RQE estão prontos para explicar a origem dele?
Admito que esse tema não tem fim. Mas prometo trazer outras reflexões por aqui.
Sei que é um tema que acende paixões, mas tenho o dever de retirar o véu de santidade que cobre o tema.