Esse não é um texto que pretende ser polêmico, apesar do título dar essa impressão.
Na medida que você, leitor, for avançando, verá que o texto só pretende ser técnico. Ou melhor, só pretende fazer uma análise técnica. Em síntese, uma análise técnica da norma que tornou a auditoria médica uma área de atuação.
O tema, provavelmente, vai acender paixões das mais variadas, mas eu prometo fidelidade às normas. Esqueçamos um pouco as paixões e vamos analisar as normas.
Vamos começar.
Àqueles que não sabem ainda, a Portaria CME nº 01/2016 – homologada pela Resolução CFM nº 2.148/2016 – trata do reconhecimento e o registro das especialidades médicas e respectivas áreas de atuação.
De início, é possível perceber que o art. 1º, § 1º, da Portaria CME nº 01/2016 teve o objetivo de definir o que é “especialidade médica”.
A expressão “especialidade médica” foi conceituada como “núcleo de organização do trabalho médico que aprofunda verticalmente a abordagem teórica e prática de segmentos da dimensão biopsicossocial do indivíduo e da coletividade”.
Assim, como regra, são “especialidades médicas aquelas consideradas raízes”.
Apesar disso, o art. 1º, § 3º, da Portaria CME nº 01/2016 amplia um pouco o conceito, acrescentando que poderá ser especialidade médica aquela que preencha, a um só tempo, alguns outros critérios. Mas não vou me aprofundar nisso, agora. Não é esse o objetivo do texto.
Se for curioso, convido você à leitura da Portaria CME nº 01/2016. Mas termine o texto primeiro.
Vamos seguir.
Ao lado do conceito de especialidade médica, a Portaria CME nº 01/2016 – no art. 1º, parágrafo 2º – teve por pretensão fixar o conceito da expressão “área de atuação”.
A norma conceituou área de atuação como “modalidade de organização do trabalho médico, desenvolvida por profissionais capacitados para exercer ações médicas específicas, sendo derivada e relacionada com uma ou mais especialidades”.
Assim, é imprescindível que a área de atuação – a um só tempo – derive e seja relacionada com uma ou mais especialidades médicas, do contrário a atividade não poderá ser reconhecida como área de atuação. Essa informação é absolutamente relevante.
Vou tentar ser um pouco mais claro.
Não há nenhuma dúvida que a norma não trouxe requisitos alternativos, mas cumulativos ao reconhecimento de uma área de atuação. Assim, não basta que a atividade médica seja derivada ou relacionada a uma especialidade médica, é imprescindível que a atividade derive e seja relacionada.
Obviamente, repito, se a atividade não derivar, mas apenas for relacionada a uma especialidade, essa atividade médica não poderá ser considerada área de atuação.
Passo a analisar alguns exemplos.
A neonatologia é área de atuação que, sem dúvida, deriva e é relacionada à especialidade médica pediátrica. Sendo assim, o médico só poderá ser certificado como neonatologista caso seja, anteriormente, reconhecido como especialista em pediatria. Não há como um médico ser neonatologista sem ser pediatra, já que a neonatologia – como área de atuação que é – deriva e é relacionada com a pediatria (especialidade médica).
Já a cardiologia pediátrica é reconhecidamente área de atuação, nos termos da Resolução CFM nº 2380/2024. Não há dúvida que esta área de atuação decorre e é relacionada de forma imediata com duas especialidades médicas, quais sejam: cardiologia e pediatria. Por essa razão, é imprescindível que o médico, para ser certificado como cardiologista pediátrico, seja especialista em cardiologia ou, alternativamente, em pediatria.
Vamos seguir mais um pouco.
O art. 5º, da Portaria CME nº 01/2016 esclarece que a Comissão Mista de Especialidade (CME) somente reconhecerá área de atuação com tempo de formação mínimo de um ano, sendo obrigatória a carga horária anual mínima de 2.880 (dois mil oitocentas e oitenta) horas. Ou seja, não será área de atuação a atividade médica que não tenha tempo de formação de um ano e carga horária mínima de 2.880.
De forma simples, caso uma atividade da medicina (1) não seja derivada e relacionada com uma ou mais especialidades e (2) não tenha programa de residência médica com tempo de formação mínimo de um ano, com carga horária anual mínima de 2.880 (dois mil oitocentos e oitenta) horas; não poderá ser definida como área de atuação.
Por fim, esclareço que não é porque é uma atividade médica tem muito tempo de existência – ou muitos médicos – que deve ser reconhecida como área de atuação ou especialidade. Não sou eu quem está dizendo é o art. 1º, § 7º da Portaria CME nº 01/2016.
Art. 1º, § 7º O número de médicos e o tempo de existência de uma atividade não são parâmetros para reconhecimento ou exclusão de especialidade ou área de atuação.
Trata-se, como se verá nas próximas linhas, do caso da auditoria médica.
Sigamos.
A Resolução CFM nº 2.330/2023 – ao mesmo tempo que reconhecera a auditoria médica como área de atuação – incumbiu, de forma incompreensível, à Associação Brasileira de Medicina Preventiva e Social e Administração em Saúde (ABRAMPAS) a certificação da nova área de atuação.
Assim, além de ter sido (1) reconhecida como área de atuação sem preencher os requisitos previstos na Portaria CME nº 01/2016; (2) não fora atribuída a competência credenciadora à Sociedade Brasileira de Auditoria Médica (SBAM), mas, sim, à Associação Brasileira de Medicina Preventiva e Administração em Saúde (ABRAMPAS) que – em seu ato constitutivo – nada revela sobre a auditoria médica.
Como eu já escrevi linhas acima, não há como a CME reconhecer alguma atividade médica como área de atuação sem que o tempo mínimo de formação seja de 1 (um) ano, com carga horária de 2.880 horas, sob pena de violação ao art. 5º, da Portaria CME nº 01/2016.
Art. 5º A CME somente reconhecerá especialidade médica com tempo de formação mínimo de dois anos e área de atuação com tempo de formação mínimo de um ano, sendo obrigatória carga horária anual mínima de 2.880 horas.
Em recente pesquisa que fiz à Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) não há programa de residência médica em auditoria médica. Não há, também, notícia de treinamento médico de carga horária idêntica.
Além disso, não há nenhuma dúvida que a auditoria médica não é derivada e relacionada – de forma concomitante – com uma ou mais especialidades médicas. É possível dizer que a auditoria médica é relacionada com algumas especialidades, mas não é derivada de uma especialidade, em específico.
Perceba, caso a auditoria médica derivasse de alguma especialidade específica (ou de mais de uma) certamente poderia ser reconhecida como área de atuação.
Mas, nesse caso, apenas aquela (ou aquelas) especialidade seria pré-requisito para a aquisição do Registro de Qualificação de Especialista (RQE) em auditoria médica.
Esclareço. Para que um médico seja certificado em uma área de atuação é preciso ser, antes, especialista na especialidade que a área de atuação deriva e é relacionada.
Como forma de burlar a norma, o Conselho Federal de Medicina (CFM) admitiu que a auditoria médica fosse área de atuação de absolutamente todas as especialidades médicas.
É exatamente isso que você leu. A Comissão Mista de Especialidade (CME) entendeu que a auditoria médica deriva de todas as especialidades médicas. Para a Comissão Mista de Especialidade e para o Conselho Federal de Medicina a auditoria médica deriva da acupuntura e da homeopatia, também.
Mas vamos avançar já para uma reflexão final.
Então, se o médico é homeopata, acupunturista ou médico nuclear ele preenche o pré-requisito necessário para se submeter à prova de título – aplicada pela ABRAMPAS, que nada tem a ver com auditoria médica, diga-se de passagem.
Contudo, se um médico que trabalha há duas décadas com auditoria, mas não tem especialidade registrada – porque dedicou sua vida a realizar auditorias – jamais poderá ter Registro de Qualificação de Especialista (RQE) em auditoria médica. E, provavelmente, ficará desempregado.
Minto, basta ele fazer uma residência médica em homeopatia antes.